Sonhei com e amanheci pensando em carpideiras. No sonho, tapeçaria desfiando: morte e vida severina, daí a redinha carregando o morto, a dor e choro, vem de lá a carpideira, da carpideira de rosto molhado pra terra ressequida, dela pra a idéia sertão e então grande sertão: veredas e, num salto, das veredas do sertão praquelas que ora trilho e, tudo misturado, meus próprios caminhos no sertão do peito e as mortes, tantas, em mim, estão acompanhando a viagem?
Sertão é isto: o senhor empurra para trás,
mas de repente ele volta a rodear o senhor dos lados.
Sertão é quando menos se espera
Existe um lugar em mim bem assim: é quente, é árido. E é tão bonito que se faz nó na garganta. Um território feito de suor, temperança e valentia, ocupado por um povo cor de barro, olhinhos estreitos do sol, pele com arabescos do fácil sorrir. Foi um assim: eu cresci quase dentro do mar. Mas eu crescia na praia e o sertão crescia em mim. Já contei esta história tantas vezes que as palavras já conhecem o jeito de se ordenar. Ao mesmo tempo, todas as vezes que digo sertão, eu reinvento não só paisagens e sons e cheiros, mas a gente que sou e todos os meus.
Há um tanto de sertões. O meu é de rede com varanda, armada no alpendre, embalada por descalços pés. O meu é de escuros e lamparinas, de palavras que gemem que nem o som da sanfona choradeira. Minha pátria minha língua e a minha soa como resfolego, tamborete, cangote, lundu, rebolar no mato, chegadinho – o de comer, xodó, chamego, furdunço, marmota, mungango, remexer, descambar, moleira, leite mugido, história de trancoso, esprangida, saliente, léguas, amiudar e mungunzá salgado – o de milho com feijão.
Há sertões e, neles, sol. E é de muito sol na moleira que a pessoa sente comichão no peito se ao longe um aboio. Ou um terreiro pintado de coloridas bandeirinhas, o quente da fogueira e todas aquelas comidas apetitosas e nutritivas como indicativo do bravo milho, brotando, teimoso, da terra seca. Ah, despalhar a espiga, e, de repente, o cabelo do milho, farto, sedoso, encobrindo, com pudor, cor e sabor. Milho e feijão, as possibilidades daquela agricultura feita de esperança. Debulhar feijão verde, sentada no cimento frio, bacia de alumínio e conversa que vai e vem num descansar de tanta lida, uma ação que ainda se faz em mim, mesmo que eu, há tempos, não repita.
Minha bisavó era que nem milho e tem coisa mais linda não, o saber encoberto, a pele tão enrugada e marcada que eu não podia pensar que um dia foi jovem. Mãe Bia, nunca foi outro seu nome em mim. Miúda e valente, pariu um mundo pra nós. A mim, sempre pareceu que ela nasceu assim: com a história do mundo desenhada no rosto. Ou, pelo menos, a história desse sertão (m)eu.
Esse sertão que é chapéu de couro, ovo caipira, galinha à cabidela, porco torrado. Manteiga da terra. Banho de açude. Pedra Branca. Crateús. Acopiara. Juazeiro. Nomes que comovem. Sertão que é tapioca com nata. História de trancoso. Lamparina. Desinformação, fragilidade, pobreza. Leite mugido, solidariedade, beleza. Agente de saúde na porta, tirar uma novena e feijão com rapadura. Valei-me, meu padim padi Ciço. Resistência. Eu sinto esse sertão no anterior de mim: terra a perder de vista, molecada correndo solta misturada com galinha, porco, bode, café coado pra oferecer ao passante, piso frio de cimento, carpideiras e mortes ao meio-dia. Assim é ser sertão: é ter o riso maior do que a boca, é ter sempre mais boca do que dente.
Amar um sertão é saber da promessa de beleza onde ela ainda não está. Os vastos espaços, meus e de minha terra, esverdejam só de adivinharem água. Precipitação? É, mas de pouco em pouco nos fazemos antes de ser e isso é uma coragem. O sertão é disputa e penúria e sofrer e solidão e vinganças. Mas é, também, lua alta e sentir o querer bem e esperança e confiança e aceitação e som. Um sertão de ruídos: o alvoroço dos capotes no terreiro, os sinos no pescoço do gado, as conversas animadas ao pé do fogão à lenha, o som dos dados na varanda, o aboio distante, o roçar da colher no prato de alumínio, a gaitada infantil sem pejo de ser pixototinho, as novenas, o "ô de casa", as estórias de assombração. Um lugar de moças religiosas, de uma fé arteira, com menos culpa do que festejos, deixando o tempo passar sem passar por ele. Um sertão de ficar sabendo do mar e pensar se é bom que nem açude.
Sertão e sentidos. Ouvir, cheirar, provar, ver, tocar e entrelaçar tudo num intangível. Fulano ficou sentido. Um alguém sensível, que se magoou. Me perco nestas veredas até olhar pro céu e me alegrar se “tá bonito pra chover”. É que não há cheiro no mundo como o de terra molhada. Promessa de vida. Frágil, simples, rasteira feito pé de melancia, macaxeira, feijão. Rama. E no oposto, a ciência das mortes, também as vãs, de peixeira, desigualdade ou banzo.
Um sertão vai percorrendo quem o andarilha. Em mim, assim: no desassossego de me abobar vendo a lua e acender fogueira como quem acende o futuro no peito e manda notícia pra São Jorge.
Minha imaginação cresceu ouvindo canto de assum preto, acauã e asa branca, sendo esprangida e recatada, num vai e vem de dizer que a saia termina cedo pois facilita pra dançar o xenhenhem mas ser em rubor só de pensar no enlaçar. Feminino é assim o sertão (m)eu, sertão com cara de avó. Sertanejas de coragem. Tiveram dezessete filhos, cada uma, perderam um tanto deles, maior ou menor, conforme. Minhas avós já morreram. Cada uma de um jeito. No seu jeito, talvez.
Minha avó materna poderia aparecer em qualquer propaganda de margarina. Cabelos brancos, bochechas rosadas, sorriso afetuoso. Era casada há 60 anos e ainda chamava meu avô de benzinho com um sorriso misterioso no canto da boca. Ela fazia tapioca com nata. E me contava histórias de amor. Histórias do namoro dela com meu avô e como foi preciso uma liberação do Papa para que se casassem, a história dos meus pais, os namoros dos meus tios, minha tia pulando a janela, os casamentos, divórcios e novos casamentos na família. Foi ela que me deu uma rede cor de rosa, nos meus quinze anos, pra deitar com o namorado. Minha mãe jura que eu inventei essa dedicatória. Pode ser. Mas não torna menos verdade não ser real, é um sinal do que ela me transmitia. Minha avó Pedita era lâmina em seda enrolada (como cantaria o Quinteto Agreste). Avó das mãos confortadoras. A minha avó nem parecia ser quem viu seus bebês, tão pequenos, uma vez até gêmeos, morrerem de desinformação, fragilidade, pobreza. E que teve a filha ser assassinada por um marido que tinha, além do ciúme, machado e mão firme. Não parecia ser a mulher que recolheu a dor, a família, deixou casa e pasto, foi pra cidade. Pra lá ver seu filho ser morto por engano e seu marido não morrer com sete tiros. Uma rixa alheia que escolheu o lado errado da rua pra acontecer. Não parecia, com seu sorriso e bondade, ter sido a mulher de tantas perdas. Eram muitos os filhos, foram indo, ficaram cinco e uma ruma de netos e bisnetos que, nas bodas de diamante, só mesmo ônibus e mais ônibus pra reunir a família. Um câncer a consumiu. Foram muitos anos de lenta despedida. Ela ficou careca. Magra. Frágil. Mas nunca perdeu a capacidade de acolher e cuidar. Mesmo muito doente era ela que nos preparava para a saudade. Ela quem sempre tinha palavras alegres. Ela que sempre lembrava os melhores momentos com cada um. Morreu demoradamente, como se só pudesse partir depois que deixasse tudo no seu devido lugar. Lembro da valsa na sua última festa. Ela, linda, terninho bege, chapeuzinho combinando cobrindo seus ralos cabelos, os olhos perdidos nos olhos do meu avô. Ele mergulhado nos perdidos olhares dela. Eles conseguiam fazer isso: encontrar-se um no outro. Minha avó materna era açude, água disfarçada de bonança, promessa de segredos e encantos.
Minha avó paterna era ventania. Redemuinho. Morreu tão rápida e surpreendentemente que nem me deu tempo de entender que seu riso alto já não estava mais por perto. Minha avó Dilurde jogava sinuca e, às vezes, pra enganar meu avô, colocava ovos no lugar das bolas (isso era possível porque não tinha energia elétrica e usávamos lampiões a gás, assim, à noite, era sempre mais difícil ver e mais fácil rir). Minha avó paterna rolava nas dunas com os netos. Tomava banho de piscina e nos desafiava pra ver quem tinha mais “folgo”. Quando eu ficava gripada, ela me dava limão com cachaça e me piscava o olho. Era alta, magra, rija, alegre. Criou catorze dos dezessete filhos até serem adultos, eu nem consigo imaginar como. Tinha um método disciplinador arrojado: quando algum filho, qualquer filho, fazia uma danação, ela dava cascudos no que estivesse mais próximo. Surtiu efeito. Esta minha avó foi a pé do interior do Ceará para Teresina, na época da seca, com meu pai recém-nascido no colo. E, uns anos depois, deu meu tio pra ser criado em outra casa porque não tinha condições de educá-lo. Sabia ser firmeza, mas também flexibilidade. Foi essa avó que me ensinou a fazer capitão com feijão e farinha e eu ainda acho que esta é a comida mais gostosa do mundo. A vó Dilurde não sabia ficar calada e, em qualquer lugar, logo se tornava centro das conversas e risadas. Não havia nada como a narrativa do dente que nasceu no seu tornozelo. Ela e meu avô brigavam o tempo todo e não se largavam nem por um dia. Não adiantava convidá-la pra passar um tempo longe que ela sem cogitava. Esta avó contava histórias de trancoso, mas só à noite, pois senão o rabo crescia: a princesa pele de burro, o menino de ouro, a mágica toalha que bastava ouvir um "põe-te mesa" e todas as fantasias gastronômicas se realizavam. Não me foi dada a oportunidade de aprender a viver sem ela. Ela se foi ligeira, como ligeiras eram as suas risadas. Deixou-me seus irmãos que existem fora do tempo e, numa espécie de quebra-cabeça, são ainda ela: o criativo Louro, o bem-humorado Manel, o agregador Ermínio, o confiável Zé, em todos estes abraços eu encontro com ela.
E o sertão é, enfim, palavra. Palavra de Guimarães, palavra de João Cabral, palavra de Patativa e de Gonzagas, palavra de Louro (que não é conhecido de vocês, mas é tio-avô mais arteiro, inventivo e tinhoso que alguém pode ter). A palavra que eu invento, a palavra que me cria, a palavra que revive os mortos e adormece os vivos em histórias de beira de fogueira.
Pois lá tem minha gente. Abraço que chega meio de lado. Sorriso que nem precisa de dente. Açude. Garrafa de feijão enchendo um quarto. Memória em hipérboles de deixar meu riso ainda mais solto. Fogão a lenha. Jogo de baralho. Pé descalço. Anos que nem parecem ter sido, mas foram muitos e sofridos. Cartão de aposentado pra um, 3 doses de cachaça por dia pra sustentar as pernas do outro que pega num pega os cem anos. Uma pessoa que passa pra agradecer um favor antigo e toma um café. Uma buzinada na estrada pra saudar. Outro que compra fiado uma garrafa de vinho de 5 reais. Uma rede na varanda. Vento na varanda. A vida na varanda. Antena. Celular sem sinal. Cafuné. Caçar cabelo branco. Jerimum caboclo. Pizza, viva. Crianças. Casa nova. Concurso, moto, trabalho. Formaturas e orgulho. Azulejo. História de trancoso. Onça, alma, adevogado, paquera, madrinha, festa de são Gonçalo, barca de noé. A arte de contar, se alguém pensa que já viu, se não for esta, foi muito pouco quase nada. Mãe Bia, Capazorelha, O Vó, Pai Sal, gente que já não está mas é como se. "Manel, qué casar com uma santa?".
Sou dos que se sabem mais se sabendo uma gente. A minha gente sou eu. E eu sou, mesmo se por vezes tão distante me sinto, um muito que é sertão. Sertão é saudade. Até saudade de quem eu não posso ser. Penso em todas as inúmeras escolhas que não fiz e que, assim, não me fizeram. Ou sim, justamente na ausência. Eu sou a profecia: o sertão vai virar mar. Maré cheia. Transbordo em lágrima. Carpideira dos mundos que acabam. Em mim. Pra mim. Permanece sertão. Sentir o sertão não é mais nem menos. É ser quem estive. O nascer, incerto. A morte, certeira. No sertão não se teme o tempo, nem se teme a vida, porque não se tem tempo de saber a morte. Não se morre, se encanta. Um passado dolorido, mas também bonito. Um presente bonito, mas também dolorido. Eu lá fui. Fui? Lá chegando, já estava.
Olhe, eu não sei expressar o tanto que me emocionei com esse texto. Eu não fui/sou tão sertão, meu pai veio cedo pra cidade, os irmãos se espalharam por esse brasil, não tenho um sertão pra onde voltar. Os da família que ficaram eram a banda rica, que virou fazendeira com o tempo e hoje defende bolsonaros e evangélicos. Mas esse texto é todinho meu pai e as histórias que ele conta. Minha avó que eu não conheci e minhas tias que têm tantas histórias. E agora que meu pai tá mais pra lá que pra cá, velhinho e dando susto na gente, chorei lendo tudo isso.