1.
Quem me lê já faz um tempinho sabe que sou apaixonada pelo Museu dos Corações Partidos (Muse um of Broken Relationship)- escrevi sobre ele no Biscate Social Club nos idos de 2014 (Quando o amor acabar), atualizei o texto nas Garrafinhas (Há folhas no meu coração) em 2023, quase dez anos depois, enfio em toda conversa de bar que nem a Letrux (“ninguém perguntou por você, eu ri, te citei mesmo assim”) e vira e mexe ainda divago pensando nele.
O Museu dos Corações Partidos existe desde 2006 e começou a partir do fim (#desculpe) de um relacionamento - o casal Olinka Vistica e Drazen Grubisic terminaram o lance deles e, na hora de dividir as coisas, não sabiam o que fazer com um coelho de brinquedo. O coelhinho foi o primeiro item da coleção. Isso me enternece demais. Tanto que tenha vindo do singelo (um coelhinho!) como a divisão de bens ter proporcionado não uma discussão, uma briga, mas um outro lance pra eles viverem juntos (Chico, queridíssimo: pra onde vai o meu amor quando o amor acaba?)
Acho bonita a ideia de um Museu que coleciona e expõe objetos de relacionamentos terminados/acabados/findos, de vínculos rompidos/interrompidos/cortados, de corações partidos (no site você também encontra relatos de relacionamentos e as perdas vinculadas). Legados de um sentimento que já não é. Pessoas que estavam juntas por afeto, hábito, costume, conveniência, até amor, e aí, vrau, já não estão, estas pessoas enviam pra lá as coisas que marcaram a relação. Quem teve o sentimento e suas manifestações concretas e, não tendo mais o sentir, não consegue ou não quer mais conviver e guardar as lembranças feito objeto, fica sabendo que tais coisas encontram cantinho certo lá na Croácia.
O acervo abarca desde coisas inusitadas como uma garrafa de lágrimas e um machado (sem vítimas) até objetos triviais, em si mesmo quase insignificantes. Narrativas condensadas. Tanta coisa por dizer, tanto futuro que já não será, tanto passado encarnado, alguns arrependimentos, umas saudades. Alguma alegria recordada, espero. Objetos que dizem de vidas que já não são. Todos esses objetos que ocuparam algum espaço, depois de doados, deixam o vazio pra que a vida possa ser.
Quer visitar? O museu fica na cidade de Zagreb, na Croácia (mas funcionou/funciona também como museu itinerante e, desde 2016 existe também em Los Angeles).
E aí, mais recentemente, conheci outro museu que me comoveu imensamente, este bem mais pertinho - vizinho da minha amiga Niara – o Museu das Coisas Banais. Estou (estamos?) acostumada com museus que preservam algo muito raro e com aparente valor próprio, por antiguidade, por terem sido de um “alguém” (rei, artista, sei lá). Relíquias já que “pertenceram a” ou porque “produzidas/fabricadas por”. Este Museu das Coisas Banais dá uma bela rasteira nesta ideia. Um museu com objetos ordinários, cotidianos, triviais, objetos que ganham importância em relação – fiquei emocionada demais com isso.
Gosto demais do que a proposta sugere: colecionar e expor memórias íntimas, familiares, acessíveis, memórias reconhecíveis associadas a objetos. É como um: “psiu, sua experiência importa”, afinal os museus costumam preservar os elementos que são reconhecidos como relevantes para a sociedade. Um museu preserva o que deve ser mantido. E este museu assinala: o que deve ser mantido pode ter seu valor oriundo da vivência simples das pessoas comuns. É bonito demais este convite de mudarmos o olhar a respeito dos bens, via afeto (deposite aqui seu suspiro juntinho do meu)
Acrescente-se a tudo isso o fato do museu ser virtual, tendo os objetos fotografados e as narrativas relativas a eles relatadas em textos, e vejam a belezura: tal dinâmica aprofunda a proximidade, gera uma “permissividade” em relação ao acervo. Podemos ver, podemos saber, podemos sentir, mesmo sem ir lá (o lá nem existe, a não ser em exposições eventuais).
Para mim, “passear” pelo Museu de Coisas Banais é uma recorrência de “quem nunca, quem nunca, quem nunca”. Tudo próximo, familiar, confortável e, ao mesmo tempo, instigante, provocativo, inquietante. A vivência de alguém “como eu” e, ainda assim, uma alteridade. Olha só:
“Acho que sequer sou capaz de dizer a idade deste cordão. Verdade seja dita, o cordão, em si, é relativamente novo, 1 ou 2 anos talvez. O pingente por outro lado, deste sim não sou capaz de dizer a idade com exatidão. Ganhei-o de meu irmão, a uns 15, talvez 20 anos atrás. Na época ele cursava um destes cursos de engenharia, acho que mecânica e, se me lembro bem, o fez com “as próprias mãos”.
[...] forçando o olhar é possível perceber que esse pingente foi, em outros tempos, uma moeda de 400 réis. Datada de 1901, na verdade. Quando o ganhei, lembro-me bem, o tempo e o uso ainda não haviam subjugado suas características físicas mais distintivas. A pele e o suor ainda não haviam removido suas saliências, mais ou menos como a vida faz conosco, “polido suas arestas” até seu presente estado de disco fino e irregular, recortado em forma de pássaro. Enfim, imagino que para alguns numismáticos mais ortodoxos pode parecer um disparate as transformações aplicadas sobre este objeto de mais de 100 anos – que talvez até pudesse ser uma moeda digna de algumas coleções. Outros podem achar estranho que eu diga que este pingente foi uma moeda, e não que esta moeda é um pingente, pois aqui sim a ordem dos tratores altera a colheita. Mas a verdade é que não acho que importa muito o que este objeto foi, e sim o que ele é. E ele é, para mim, além de lembrete daquilo que ficou para trás, a materialização daquela sensação de que “nem tudo está perdido”. É, ao mesmo tempo, lembrete de que coisas mudam, perdem e ganham valor”.
(B. L. R. Museu das Coisas Banais, 30 mar 2015)*
O presente de um irmão. Quem nunca? Mimo feito pela própria mão de quem nos ama. Quem nunca? Não saber de quando é alguma coisa ou quando foi que aconteceu algum evento. Quem nunca? A vida polindo nossas arestas, transformando jeitos e coisas. Quem nunca? A ordem dos fatores alterando o sentir, qualificando e sendo qualificada pelo vínculo com pessoas e objeto. Quem nunca? Lembrar que as coisas mudam e, neste processo, perdem e ganham valor. Quem nunca?
Eu, eu sempre. E, ao mesmo tempo, tudo outro. Outro irmão, outro mimo, outro esquecimento, outro afeto, outra poda, outras mudanças e outras, muitas, diversas perdas. E construção de sentido.
Vagar pelo acervo do Museu das Coisas Banais é vasculhar os cantinhos do meu existir. E, neles, encontrar o que deve ser preservado.
*(no site do Museu só encontrei a primeira parte do relato, o texto completo eu vi em um artigo nos Anais da Semana dos Museus da UFPel – 2015/2016/2017)
2.
No tempo em que o Facebook era a rede favorita de 8 em 10 “internautas” (ou seja, quase anteontem), apareceu uma pesquisa afirmando que um mói de gente não gosta de ver fotos dos seus amigos em férias. Claro que a divulgação da pesquisa (e a própria) tem vários senões: a metodologia da coleta e análise dos dados, o conceito de amigo, a especificidade do local onde as fotos são vistas, etc. Mas a verdade é que nada disso interessa porque eu só quero mesmo uma desculpa para dizer o que eu quero dizer. Como um trampolim na beira da piscina em que a gente (sendo, excepcionalmente, vocês, esse a gente, quando a gente usualmente sou eu, mas divago) usa pra pegar impulso e dar um mergulho (e são vocês porque eu entro, sempre, nas piscinas, nos açudes, nas lagoas, nas poças de água, pelas escadinhas - ou sento na borda e deslizo... quando muito dou um impulso levinho).
Bom, finalmente submergindo no assunto, a verdade é que eu adoro ter notícias de quem eu gosto. Longas conversas, emails extensos, bate papo nos zaps e telegrams e, claro, fotinhas no FB (ou, atualizando a conversa, fotinhas no instagram). Gosto mesmo de ver fotos dos meus amigos, tanto do cotidiano como de férias. Aumentam, acho, a intimidade. Aproximam.
Quando alguém "me" mostra um momento rotineiro seu, é quase como uma conversinha no boteco. Entretenimento, proximidade, prazer. Gosto de ver o caminho que fazem para o trabalho, a xícara grande onde bebericam o café, a vista da janela lateral do quarto de dormOPA. Gosto de ver nos bares, nos jantares, na-rua-na-chuva-na-fazenda gosto de vê-los entre outros amigos (nas passeatas, comícios, cirandas, whatever, amo saber minha gente no mundo). Façam fotinhas e postem, eu peço.
Façam foto daquele bonito prato de comida. E daquela receita delícia, mas nada, nada fotogênica. Foto de plantinha crescendo no jardim. Da flor já murcha pendurada pela peinha no galho. Dos vasos de cebolinha e coentro. Da parada de ônibus lotada. Do ônibus vazio. Da criança rindo. Do gato ronronando. Da cara arrependida do cachorro que comeu o relatório. Da caneca suja de café no trabalho. Da pilha de papéis na caixa de entrada. Da bagunça na mesa. Na sala. Da cor nova na parede. No cabelo. Do trem das cores. Da capa do disco do Caetano. Da taça de vinho. Da fumacinha saindo do bule. De toda coisa. De qualquer coisa que te encha os olhos. Que vai acabar me enchendo os olhos… de lágrimas. Gosto do diário, do banal, do que está sempre e que forja esses que amo. Apreciar este cotidiano me faz me apaixonar pelo insuspeito, fenômeno possível via olhar do outro.
E amo as fotos de viagem, um tanto porque é uma oportunidade de revisitar ou de me aproximar de lugares que nunca fui ou irei, pelos olhos de quem vê algo do mundo de uma forma que me inspira. Outras tantas vezes por me levar a lugares que eu nem pensava ser interessantes ou divertidos, mas que, coloridos pela emoção no olhar de outra pessoa causam uma coceirinha: uia, olha só, quem sabe? Viajo junto. Estou aqui, no calor e alvoroço do meu dia, vejo uma foto numa esplanada em Portugal em janeiro e sinto até o arrepio do ventinho frio. Me emociono. E aprendo. Aprendo muito. Ante registros do desconhecido, aprecio as legendas, as informações que eu nem suspeitava, os momentos lúdicos, as pegadinhas, os sustos, as descobertas. Outro tanto ainda (talvez maior) é por ver a pessoa pelo mundo que ela vê e como ela se relaciona com isso. Aprendo sobre ela, também. Sobre o que a faz sorrir, o que a comove, o que a entusiasma, o que ela, também ela, aprende – e como aprende. Como isso pode ser menos que adorável? (e tem mais, né: saber que as pessoas de quem gosto estão bem, descansando, divertindo-se, passeando).
Eu gosto demais de gente e gosto demais dos meus amigos para não gostar de algo que me faz senti-los mais próximos, pra não gostar de algo que me permite saber mais deles, vê-los mais, ficar mais juntinho… mesmo que, contraditoriamente, viajem ou mesmo se mudem pra o reino tão, tão distante. As fotos são uma espécie de portal. Adoro quando as pessoas têm a generosidade de dividir. Então, peço aos amigos, postem fotos, álbuns imensos e, se lembrarem, até me marquem.
E vamos de valorizar a ciência justamente ignorando pesquisa mequetrefe, laralilá. Aproveito e coloco essa fotinha aqui, nem férias nem cotidiano, uma brechinha em que se esgueira a mais banal alegria:
3.
Tem gente que vive cada momento com intensidade. Que tem perguntas perturbadoras e alegrias ensurdecedoras. Gente que se envolve em grandes casos de amor. E desencontros dramáticos. Desavenças épicas. Eu não sou essa gente (mas sou um pouco, agora, o povo do Davi Luiz #EntendedoresEntenderão).
A verdade sobre mim: sou banal. Eu sou do feijão com arroz. Não, eu sou do feijão com farinha. E ainda faço capitão. Juro. Enfio a mão no prato, amasso e faço os bonequinhos – para depois devorá-los. Mas, enfim, eu ia dizendo, tenho alegrias pequeninas. Essas alegrias que amanhã são passado e pouco arranham a parede da memória. Sou dos clichês. Obviedades desde o café da manhã. O time das massas. A escola de samba mais querida. A maior cantora do Brasil. Os autores renomados. #SouDessas. Banal. Procuro o mar quando estou dolorida. Procuro o mar quando estou contente. Me encontro. O comum me enleva: uma cozinha ocupada, uma cama bagunçada, as roupas no varal, um livro aberto no sofá, um filme que quase cheira a guardado. Nenhuma lembrança sólida para o amanhã registrado por biógrafos. Vou passando. Faço pesquisas, faço charme, faço linguiça com batata ao molho. Banal. Às vezes queria ter uma história melhor pra contar. Mas me distraio buscando um abraço. E cozinhando feijão.
quero conhecer os museus agora!
amei o texto. um beijo.
morro de curiosidade de conhecer o museu dos corações partidos…